28 outubro 2012

Arely A Mensageira - Capítulo 1: Sonhar

PARTE 1:
MUNDO DE HIPÓCRITAS

"E se o mundo é cheio de hipócritas, que posso fazer eu para mudá-lo? Só posso continuar seguindo, ignorando seus joguinhos e não me juntando à essa corja"


SONHAR

Mexeu-se desconfortavelmente na cadeira, olhando através da grade da janela para a árvore frondosa que se erguia de um dos pequenos jardins do colégio. Sabia que algum de seus colegas olhava insistentemente para ela por sentir suas costas queimarem. E não gostava. Definitivamente não.

Se descobrisse quem era, ao menos... Mas era inútil. Sempre que virava os olhos cor de chocolate ao leite para tentar localizar quem lhe olhava com tanta insistência, quem quer que fosse, desviava o olhar na mesma velocidade, quase como se previsse os seus movimentos. E isso com certeza a irritava.
Voltou a olhar para a árvore, já sem folhas por conta da época de seca que entrara um mês atrás, no começo de maio, ignorando, além da explicação sobre a arte pré-colombiana, o olhar desaprovador da professora pela sua falta de atenção. Tirava de letra as provas de Artes – mais por culpa de sua memória quase fotográfica que qualquer outra coisa.

E então, a sensação de estar sendo observada voltou. Xingou mentalmente quem quer que fosse, mas ignorou. Não adiantaria tentar descobrir quem era.

Apoiou as costas contra o encosto da cadeira, cruzou os braços e encostou a cabeça na coluna que havia naquele ponto. Pescar um pouco antes da aula de Geografia não faria mal nenhum... Ainda mais em se tratando de uma aula dupla.


Bocejou enquanto sentava em seu lugar depois da apresentação para o professor de Geografia. Já se arrumava para continuar o cochilo interrompido para aquilo que definia como “chatice”, mas devia saber que o professor não deixaria ela – nem ninguém – fazer isso tão fácil. Ele começou a falar sobre uma redação para ser feita em duplas, e ela já começara a olhar ao redor atrás daqueles com que normalmente fazia trabalhos em grupo, não amigos de fato. Ela não tinha amigos – não se permitia ter amigos. Não em Goiânia. Seus amigos tinham ficado em São Paulo.

Mas nem isso o professor deixou. Ele começou a sortear as duplas pelos números.

Ficou atenta quando ele falou “Seis”, o seu número, acompanhado de um “Vinte e Cinco”. Quem era o vinte e cinco? Com certeza não era o número de ninguém que fazia os trabalhos com ela, sabia os números deles de cor para fazer as capas e contracapas dos trabalhos.

Mas bufou de raiva quando viu quem era, trazendo uma cadeira para sentar do lado dela. Louis Savino Bourbon, um italiano com pose de gostosão e de playboy de quem ela não gostava. Afinal, o que raios ele tinha ido fazer no Brasil? Não podia ter continuado na Itália, perturbando as garotas de lá, ao invés das do seu país?

Sim, Louis perturbava as garotas, principalmente aquelas que estavam na onda de Crepúsculo. De acordo com elas, ele lembrava um dos vampiros bonzinhos da Meyer. Para a garota, ele lembrava sim um deles. E era mais um motivo para detestá-lo. Aquela falta de cor nele a fazia ter vontade de vomitar. Preferia os, no mínimo, morenos de sol, indo até os negros.

Alguma das meninas cutucou seu ombro, e ao olhar, era Patrícia, uma garota legal, meio patricinha, mas gente boa, com quem costumava fazer os trabalhos e que o mapa de classe feito no começo do ano colocara atrás de si.

— E aí, Ly? Vai sentar junto do Louis! Queria estar no seu lugar! – a menina estava a ponto de sair pulando. A dupla dela, Sara, parecia quase tão animada quanto Patrícia.

A garota de cabelos castanho-escuro só ergueu uma sobrancelha e sorriu de canto.

— Queria mesmo? Troco de lugar e com prazer! – em seguida apontou para o garoto, preso num engarrafamento de alunos que andavam para todo lado até suas duplas, e então fingiu vomitar. O cabelo claro demais e os olhos azuis quase brancos, um tom meio leitoso, que o rapaz tinha, faziam a jovem pensar que olhava para um fantasma.

Patrícia e Sara bateram nos ombros da garota, fazendo carrancas.

— Você tem sorte, Arely! Sabe quantas meninas estão doidas pra te matar por isso?! – Arely então usou seu melhor olhar desligado para olhar ao redor como quem não quer nada. A quantidade de olhares de ódio que lhe eram direcionados era surpreendente. Não eram todas, mas os olhares de ódio superavam os de “Tanto faz” e até mesmo um de pena que vinha de Ruby, uma garota de pele morena, cabelo cacheado e vermelho-escuro – era impossível de saber se era natural ou tingido – e olhos cinzentos que às vezes faiscavam dourados. Era estranho, porque a paulista jurava que a menina lhe odiava por causa da indiferença que demonstrava. Aquele olhar de pena a surpreendeu.

— Ok, vocês duas conseguiram me assustar... – Arely murmurou, ficando praticamente deitada na cadeira, as pernas esticadas por debaixo da mesa e da cadeira da frente, só com a testa e o coque no qual o cabelo castanho estava preso aparecendo por cima dos livros, do fichário e do estojo que formavam uma verdadeira muralha em sua mesa. Por um instante, quis não ter ouvido as garotas e continuado avoada e desligada como sempre era quando em aula: agora que estava consciente de todos aqueles olhares de ódio, sentia nervosismo rastejando por suas costas como uma fileira de formigas lentas.

Patrícia e Sara riram enquanto se ajeitavam e começavam a fazer a própria redação. Os alunos já tinham se acalmado, parado de atolar os corredores entre as mesas, e a dupla da garota conseguiu chegar até o lugar onde ela estava.

— Arelyel, certo? – ele perguntou, colocando a cadeira ao lado dela no corredor. Ele sorria como que querendo começar uma conversa amigável, os dentes de um branco ofuscante – ou branco-Omo, como Arely costumava chamar – mas ela apenas fechou a cara. Detestava quando lhe chamavam por todo o seu nome: Arelyel. Todo mundo costumava chamá-la apenas de “Arely” ou simplesmente “Ly”.

Normalmente, se fosse fazer um trabalho com um garoto, ela se preocuparia em sentar com a coluna reta, procurando disfarçar que a farda a deixava mais gorda – embora ela fosse apenas fofa, com algo de músculos provocados por longas caminhadas em meio à estradas de terra batida, mas anos sendo a “garota gorda” tinham-na deixado com certo complexo – mas com Louis, essa preocupação era inexistente. Melhor ainda se ele não se interessasse por ela.

— Prefiro Arely apenas. – respondeu no que podia ser considerado um grunhido complicado de ser decifrado, cruzando os braços. Seriam duas longas aulas... Longas demais, na sua opinião.


Atravessou a avenida com passos pesados e irritados. Geralmente, voltava para casa de ônibus, mas tinha esquecido o dinheiro para carregar a carteirinha em cima da mesa do computador e, além disso, estava muito estressada para andar de ônibus – ela não queria xingar a mãe do motorista ao invés de falar “boa tarde”, como costumava fazer. Precisava andar um pouco. Ou muito, dependendo do ponto de vista – Patrícia com certeza consideraria sua casa longe...

Raiva do italiano que sentara com ela para fazer a redação para Geografia nas duas últimas aulas preenchia seu peito e anuviava sua mente, como se ela estivesse numa de suas overdoses de açúcar após uma grande panela de brigadeiro, mas de forma diferente, como se ao invés de animada e atenta, o açúcar todo tivesse provocado o inverso.

Em certo momento, enquanto discutiam sobre alguma coisa qualquer para a redação, ela ousou olhá-lo nos olhos – algo que ela evitava de fazer com qualquer um desde que chegara à cidade. Sentiu-se como se estivesse olhando para um lago profundo e tentador, no qual caiu sem estar preparada e começou a se afogar.

Arely quase se afogara oito anos atrás, quando ainda morava em São Paulo e viajava para uma cidadezinha no interior durante as férias. Fora horrível. Ela podia perceber a superfície logo acima de sua cabeça, mas não conseguia alcançá-la. Seus pulmões clamavam por oxigênio, mas não conseguia realizar o desejo deles. E então, quando um amigo da família que estava com ela e o pai na cachoeira a puxou para cima, aspirou o ar com tanta força e vontade que achou que seus pulmões não suportariam tanto ar.

Quando o sinal do colégio tocou, sentiu como se aquele barulho insuportável fosse aquele amigo que a puxara para a superfície: fora aquele barulho que a puxou daquele lago horrível ao qual ela passou a detestar com mais força ainda.

Seu caminho para casa, como sempre, era solitário. Seria estranho se não fosse assim. Afinal, era solitária desde que chegara naquela cidade para morar, não apenas de visita. Se isolava por vontade própria. Era amigável, simpática e educada com as pessoas, e, mesmo que as pessoas se aproximassem, não encorajava essa aproximação. Não queria amigos ali; seu pequeno grupo em São Paulo lhe bastava, não importava quão longe estavam.

Abriu a camisa da farda e tirou-a de dentro da saia, ficando a camisa aberta com a camiseta de Educação Física à mostra e desfez o coque, com o cabelo longo e castanho solto, a franja lateral e cortada em diagonal indo até o queixo, caindo de forma desorganizada no rosto. Combinava com os olhos castanhos de formato indígena, deixando apenas mais exposto a mesticidade que ela, como brasileira, estava sujeita.

E continuou caminhando, virando esquinas e atravessando ruas, a caminho de casa.

Graças à Deus era sexta-feira. Um fim de semana inteiro sem ter de entrar no colégio, sem ter de ver a cara descolorada de Louis, sem ter de aturar os olhares de desaprovação dos professores quando dormia ou desenhava durante as aulas, sem ter de aturar aquele sol torrando sua cabeça.


Estava passando por uma das ruas mais remotas daquela parte do Setor Bueno, e percebeu um pequeno tumulto: alguns rapazes entre catorze e vinte anos, talvez mais velhos, arrumados num círculo, como que para esconder algo, e, acima de todas as demais cabeças, percebeu um cabelo ruivo mais para vermelho que laranja e espetado que ela reconhecia como sendo de Allan, que morava nas proximidades. Era um cara legal, que ela conhecera no ônibus quando voltava de uma de suas periódicas idas ao shopping – livraria, café, milk-shake e ideias para roupas e armaduras em seus desenhos –, mas não do tipo que arrumava confusão.

Controlou a raiva que ainda a dominava e aproximou-se, se espremendo entre os rapazes para chegar ao centro do círculo. Pôde ver ainda Matheus – primo de Allan, que o rapaz a apresentara um tempo depois, quando o encontrou ao acaso num dia que levara sua cachorra para passear – segurando outro rapaz pelas costas, os braços passados por baixo das axilas e os dedos fechando como garras atrás do pescoço do garoto enquanto o ruivo o socava no estômago.

Allan preparou outro soco, mas parou quando Arely colocou uma mão sobre seu braço.

— Desde quando fica espancando os outros no meio da rua, Allan? – ela perguntou com um tom bem-humorado, olhando para cima.

Allan olhou-a com os olhos verde-musgo – que se destacavam mais do que os cabelos ruivos na pele morena de sol – e sorriu. Arely podia ter uma altura acima da média – cerca de um e sessenta e sete – mas sentia-se uma formiga perto do ruivo que era mais alto uns bons trinta centímetros.

— O idiota tentou agarrar a Beatriz. Conhece o cara? – Beatriz era a irmã caçula de Matheus. Uma garota de pele morena, cabelos castanho-escuro que costumavam ficar presos em muitas trancinhas, olhos cor de mel e um rosto rechonchudo de criança cujas bochechas davam vontade de apertar. Arely sabia disso porque já a encontrara, e teve de fazer um enorme esforço na ocasião para não apertar de fato as bochechas da garota.

Estava a ponto de defender o agredido que apenas tivera a infelicidade de tentar agarrar a garota errada, mas ao reconhecer os cabelos e olhos claros e pele de leite azedo, sentiu a raiva pelo ser escorrer enquanto um prazer mórbido por vê-lo humilhado preenchia o lugar vago. Parecia ideal por fazê-la reviver a sensação de se afogar – ninguém diria que um rosto tão inocente esconderia uma mente tão gentil e, ao mesmo tempo, tão vingativa. Sorriu de forma sacana como resposta ao olhar esperançoso do loiro.

— É só um cara chato do colégio. – colocou o fichário no chão e sentou-se em cima dele. – Vá em frente. – disse de forma cínica.

— Como quiser. – Allan sorriu de um jeito como quem adoraria seguir aquela “ordem” e voltou a socar o rapaz. O olho direito inchou um pouco, um tom de roxo cobrindo a pele ao redor, e um corte surgiu no lábio inferior.

A garota, que mantinha uma relação estranha – ela não chamava de “amizade”, mas sabia que era algo que evoluiria para aquilo se ela decidisse se aproximar – com Allan e Matheus, observou o espetáculo por algum tempo, antes de levantar-se, acenar uma despedida para Allan e pedir licença. O espetáculo já tinha acabado pra ela – sua sede de vingança estava saciada.

Todos ao redor acenaram-lhe enquanto abriam caminho para ela. Sua memória a fez lembrar de quando encontrou aquele grupo ainda mais numeroso na praça de alimentação do Goiânia Shopping; Allan e Matheus tinham reconhecido-a e a chamaram, apresentando seus primos. Ele dissera que iam jogar no Parks e Games, e até tinham chamado-a. Seu vício em jogos – mesmo que fosse uma terrível jogadora – quase a obrigou a aceitar. Quase. Seu vício em livros falou mais alto e a intimou a visitar a livraria. Mas ela nunca deixou de se perguntar se não teria sido mais divertido ir com eles.


Allan apenas esperou Arely ficar distante o bastante para ficar sério e segurar a gola da camiseta de Louis, encarando-o.

— Você é um vampiro novato e estúpido que não sabe usar o nariz?! Esse lugar pertence à minha Alcateia! – percebeu então que Louis não o olhava. Pelo contrário, olhava através dele, seguindo com o olhar a garota que estava virando a esquina.

Allan suspirou e soltou Louis, olhando-o de um modo que misturava sarcasmo e apreensão, enquanto cruzava os braços e sorria de lado levemente.

— Deixa ver se eu entendi a sua cara: você queria chegar na casa da Arely antes dela, pra poder atacá-la? – o vampiro não respondeu, mas o olhar de pura animosidade que lançou ao ruivo confirmou suas suspeitas. Conhecia bem vampiros idiotas que queriam algum jovem em especial. Sua Alcateia já chutara muitos que tinham aparecido no bairro atrás de algum morador. Allan então começou a rir. – Cara, detesto dizer isso, mas você teve muita sorte de ser encontrado por nós antes de conseguir o que queria!

— O que quer dizer? – o loiro falou pela primeira vez desde que aquele bando de Lycans o pegara perambulando por onde não devia. Aquilo definitivamente era um inconveniente em seus planos. Precisava conquistá-la e corrompê-la antes que alguém – principalmente Lycans – desconfiasse sobre aquilo que ele já tinha certeza, correndo o risco de Adrien sentir sua presença na região e resolver dar o ar de sua graça não apenas de passagem. Precisava resolver a situação e rápido.

Allan apenas ficou sério novamente, uma expressão feroz no rosto enquanto se aproximava e o encarava.

— Que ela pode ser apenas humana, mas que por causa da personalidade e do cheiro, conseguiu chamar a atenção de gente com altos postos em várias das Alcateias da cidade e arredores. É só uma questão de tempo até que alguém decida se vai ou não tentar conquistá-la para tê-la como companheira. Imagino que você não queira comprar briga com tanta gente... – Allan semicerrou os olhos.

Definitivamente, aquilo era um imprevisto. Mas não podia esperar menos, sendo ela quem era. Levaria mais tempo do que imaginava para conseguir o que queria.

— Mas se tem tanta gente interessado nela, isso não pode gerar uma guerra entre as Alcateias? – sorriu de modo sacana, mas Allan conseguiu soltar um sorriso que fez mesmo ele, com um tremendo sangue-frio adquirido em quinhentos anos vida, ter um calafrio de medo.

— Não, nada vai perturbar a “paz” da cidade. Talvez você não saiba, mas faz tempo que as Alcateias decidiram que, quem conquistar o “coração” da Lycan, humana ou qualquer outra, fica com ela sem correr o risco de algum outro pretendente atacá-lo. Perceberam que não adiantava se matarem por companheiras que já tinham escolhido outros. Mas só vale para Lycans. – Louis bufou. As coisas só ficavam mais complicadas.

Matheus o soltou, batendo a camiseta como se ela estivesse contaminada e quisesse se livrar do que quer que estivesse nela. Allan então o puxou pela manga da camisa, sendo seguido pelos demais enquanto levava o vampiro para a avenida, relativamente próxima.

— Se qualquer um de nós sentir o seu cheiro à menos de duzentos metros da casa da Arely, vamos te caçar. Minha Alcateia ficou encarregada de garantir que nada de ruim aconteça à ela nem à família dela até que algum dos “apaixonados” decida tentar conquistá-la, e isso inclui Vampiros desavisados. – empurrou Louis na direção da avenida, que não estava incluída nos territórios da Alcateia. Era território neutro.

Louis bufou, vendo os Lycans se dispersarem em meio às ruas de seu território.

Teria de mudar os planos. Definitivamente, aquilo estava entre os piores imprevistos que ele poderia ter imaginado.

Se ao menos tivesse tido certeza do que ela era antes...


Assim que abriu o portão, sua cachorra vira-lata, Kyara, veio correndo em sua direção. Sorriu, bem mais calma depois de ver Louis apanhando de Allan, acariciando a cadela de pelos pretos, enquanto abria a porta de vidro que dava para a sala de TV. Cuidou de não deixar a cadela entrar – ou uma calamidade iria acontecer com os chinelos perdidos – enquanto o gato Tigrinho se enroscava em suas pernas, pedindo carinho. Arely riu mais ainda enquanto o pegava no colo.

— Chameguento. – murmurou, subindo para o quarto com o gato deitado em cima do fichário. Seus pais estavam trabalhando e a avó devia estar dormindo depois do almoço – como sempre.

Assim que abriu a porta, ligou o som com o CD do Linkin Park e fez as comparações de o que faria antes de almoçar, se almoçasse, já que estava sem fome: sua cama quentinha parecia convidativa, suas tarefas chatas de História, Biologia e Física eram como repelente e o computador turbinado cheio de jogos que ela amava era mais convidativo que a cama.

Jogar Dragon Age Origins, Mass Effect, Assassin’s Creed ou Prince of Persia parecia tentador... Afinal, eram os jogos mais perfeitos que existiam, em sua humilde opinião.

Deu de ombros, tirando os sapatos e usando o dedão do pé para ligar o computador. Deixou-o ligando enquanto trocava o uniforme – que foi atirado em cima da cama que ela não arrumara de manhã – por uma antiga bermuda que usara no fundamental e uma camiseta muito maior que ela do Garfield, com manchas de molho de macarrão perto da gola e tinta no resto do tecido.

Sentindo-se livre sem o incomodo uniforme, jogou-se na cadeira rotatória e digitou sua senha para acessar o Windows XP.


Havia apenas escuridão ao seu redor, mas lá na frente, percebia um facho de luz cuja tonalidade era a mesma de quando o sol atravessava a água. Andou com as mãos estiradas à frente, pisando com cuidado. Não enxergava nada além do facho de luz.

De repente, o facho de luz sumiu e sentiu alguém segurar suas mãos, entrelaçando os dedos. Qualquer garota sentiria alívio, mas ela não. Os dedos gélidos lhe causaram calafrios, e os olhos azuis e avermelhados que brilharam lhe fizeram ter vontade de sair correndo.

— Você vai ser minha. Você vai seguir os meus. Nós vamos vencer a Guerra. – a voz era possessiva de um jeito doentio, sangrenta, como se somente aquela voz pudesse fazer alguém sangrar até a morte. Era aquele tipo de voz que ela imaginava nos vilões ao ler um livro cujo cara malvado era um assassino sem escrúpulos.

Tentou soltar as mãos, mas o aperto era de ferro, e berrou de dor quando sentiu quem quer que fosse fincar as unhas em sua carne, à ponto de sentir o sangue escorrendo por sua pele e pingar, um som como que goteiras numa caverna quando o líquido pingava.

Ele a puxou para si, e ao invés de se chocar com um corpo, sentiu suas mãos serem soltas enquanto caía num mar gelado atravessado pelos raios de sol.

Suas mãos sangravam, sabia que atrairia os tubarões. Mas, de todo jeito, morreria afogada.

Era tão agonizante ter a superfície logo acima de sua cabeça e não conseguir alcançá-la...


Acordou aspirando profundamente, como se houvesse acabado de subir à superfície após muito tempo sem respirar.

Estava suada, a franja e os fios rebeldes grudando no rosto. Via Dragon Age: Origins numa tela ao estilo de “Game Over” no monitor do computador. Onde estava mesmo antes de cair no sono em cima da mesa do PC? Ah sim, enfrentando o Dragão Celestial antes do culto de Andraste. Era óbvio que morreria. Não conseguia vencê-lo sem reiniciar a luta no mínimo duas vezes, independente do nível.

Assim que saiu do jogo e verificar se a internet não tinha caído para continuar o download de mais um jogo qualquer, se jogou na cama, sem sequer ver que horas eram – sabia que ainda não anoitecera porque a luz do sol entrava pelo vidro da porta-balcão da pequena sacada – e, antes de cair no sono novamente, refletiu sobre o “sonho”.

Fora estranho. Fora muito estranho.

Qual o sentido de sonhar que estava no mar, e se afogando?

Aliás, como sabia que era o mar? Ela nunca – nunca – estivera em uma praia, só vira o mar em filmes. Só mergulhara em rios e cachoeiras. Mas sabia que havia algo no sonho que tornava aquela água distinta. Só não sabia dizer o que.


Sangue. Muito sangue. O cheiro de ferrugem e de enxofre que lhe turvava os sentidos falava que era muito sangue.

E então, frio. Muito frio, se espalhando desde as pontas dos dedos dos pés até o resto de seu corpo. Como se estivesse virando gelo. E, conforme sentia o calor sumir de seu corpo, a sensação de Divino que lhe acompanhara por toda a vida, que sempre lhe guiara, ia se perdendo, se afastando.

— EU CONSEGUI! CORROMPI A ÚNICA MENSAGEIRA DESSE SÉCULO QUE SOBREVIVEU ATÉ OS PODERES DESPERTAREM! – uma voz insana berrava do outro lado do corpo à sua frente. – Sem dúvida alguma, vamos vencer a Guerra, depois de tanto tempo!

Olhou para as mãos: o sangue do corpo maculava-as. As lágrimas turvaram o olhar, enquanto davas passos hesitantes e temerosos para trás, querendo se afastar de tanta atrocidade. Só queria se afastar. Não ver mais aquela cor, não sentir mais aquele cheiro.

— NÃO! PARE! – no instante que o “ser” gritou, sentiu o chão faltar.

Sentiu-se cair pelo abismo, e, quando as pedras e o mar lhe receberam, seus ossos se quebrando como se fossem gravetos, agradeceu, pois enquanto a vida se esvaía, a sensação do Divino não se perdera de todo. Ainda estava ali, com ela, a lhe acalmar em seus momentos finais. Como ela sempre sonhara.


Acordou ofegante. Conhecia a sensação do Divino; possuía uma fé forte, embora não fosse das mais religiosas, apesar de sua criação. E a sensação do Divino se perdendo fora real demais. E detestara essa sensação.


O que estava acontecendo com ela?

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